Campanha da FraternidadeColunistasFrancisco Orofino

Subsídios bíblicos para a Campanha da Fraternidade de 2023

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

O tema da CF-2023 é Fraternidade e Fome. O lema, tirado do evangelho de Mateus (14,16) diz “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Esta frase, tirada da perícope que narra a primeira multiplicação dos pães, serve de guia para as reflexões que seguem.

Em janeiro de 2013, foi publicado um estudo feito pelo Instituto dos Engenheiros Mecânicos da Inglaterra mostrando dados assustadores: cerca de 50%, simplesmente a metade, dos alimentos produzidos se perde ou vão direto para o lixo. As causas são basicamente a deficiência da estrutura do transporte, os problemas de armazenamento, a falácia das rígidas datas de validade, a pura especulação comercial e as inúmeras manias dos consumidores, muitas vezes presos às aparências dos alimentos. Estes dados assustam mais ainda quando são calculadas as perdas em trabalho humano, uso da terra e da água e o número de pessoas que não tem poder aquisitivo para a compra diária dos alimentos necessários para seu sustento.

Outro dado assustador deste estudo é concluir que entre 30 e 50 % do que é produzido nem chega ao mercado. Estes produtos são eliminados graças às políticas de preços adotadas pelos grandes intermediários, as multinacionais do agronegócio. Ou seja, quem produz nada ganha e quem consome paga muito. No meio, os intermediários especulam com a comida, ganhando rios de dinheiro tanto com o trabalho do produtor quanto com a fome do consumidor. E quanto mais aumenta a população urbana, mais a especulação com alimentos ganha importância, já que na cidade ninguém planta nem colhe, mas todo mundo quer feijão com arroz em sua mesa.

Vemos assim que, quando tratamos do problema da fome, uma questão importante é a produção de alimentos. Alimentação e sustento são sinônimos. Quem controla o sustento das pessoas, a produção de alimentos e de água, controla a sociedade. Desta forma, as grandes multinacionais, tipo Monsanto, buscam aumentar seu poder através do controle das sementes e da água. Hoje, metade da produção brasileira de grãos vem de sementes transgênicas. Cada vez mais a sustentabilidade alimentar está refém da especulação de alimentos. Uma seca nos Estados Unidos ou na Austrália, uma guerra na Ucrânia, significa aumentos de preços dos produtos básicos aqui no Brasil. O mercado agrário é uma rede interligada de especulação, tendo como centro a Bolsa de Grãos em Chicago, nos EUA. 

A especulação com alimentos, atividade diabólica frente às necessidades básicas de uma pessoa, é violentamente condenada na Bíblia. O profeta Amós condena veementemente os “exploradores dos necessitados, os opressores dos pobres da terra” que ficam maquinando suas trapaças comerciais, especulando com os gêneros de primeira necessidade, alterando os preços e os pesos, viciando as balanças e vendendo o refugo (Am 8,4-6). Também Miquéias (Mq 6,9-12) faz suas denúncias contra os comerciantes desonestos. O comércio sustentado pela especulação dos alimentos é duramente criticado em várias passagens, valendo destacar aqui a sábia e arguta observação de Jesus Ben Sirac: “Dificilmente um comerciante é isento de culpa em seus serviços. E o negociante não está livre do pecado. Muitos pecam por amor ao lucro e quem busca enriquecimento age sem escrúpulos. Assim como entre as pedras da estrada existe espaço suficiente para fincar uma estaca, assim entre a compra e a venda existe espaço para o pecado!” (Eclo 26,20 – 27,2). 

Também em várias passagens Jesus faz um alerta para as duas lógicas que orientam a vida de qualquer um: a lógica do acúmulo e a lógica da partilha. A lógica do acúmulo é simbolizada pelo dinheiro. A lógica da partilha revela o rosto de Deus. Para Jesus, não há possibilidade de viver as duas lógicas ao mesmo tempo. Não se pode servir a Deus e ao dinheiro. Esta passagem em Mateus (Mt 6,24) está dentro do Sermão do Monte, concluindo as reflexões sobre o jejum e abrindo caminho para as reflexões sobre a confiança em Deus. Já em Lucas (Lc 16,13), encontra-se nas propostas econômicas presentes nas parábolas dos capítulos 15 e 16. Vale notar que “fariseu” para Lucas, um pagão convertido que nunca conviveu com um autêntico fariseu na Palestina, é todo aquele que é “amigo do dinheiro” (Lc 16,14).

Multiplicar o sustento

A insinuação de Jesus, presente no texto de Mateus citado acima, de que devemos confiar totalmente na providência divina para termos o sustento necessário, pode nos dar uma ideia errada de sua proposta. O que quero propor aqui nesta reflexão é que devemos aprofundar a associação feita por Jesus entre “confiança em Deus” e “ética da partilha” como caminho eficaz para garantir o sustento para todos. O texto inspirador desta reflexão é Jo 6,1-15. Trata-se da versão joanina da multiplicação dos pães e dos peixes. Antes de mais nada, é bom saber que a palavra “multiplicação” não existe no texto bíblico. Melhor seria definir a perícope como “partilha generalizada do sustento”.

Se há um episódio fundamental para a formação catequética das primitivas comunidades cristãs era a narrativa da multiplicação dos pães. Ela se encontra em todos os quatro evangelhos canônicos num total de seis narrativas (duas vezes em Marcos, duas vezes em Mateus, uma vez em Lucas e uma vez em João). Sinal de sua importância nas catequeses de iniciação dos fiéis. Ser batizado implicava assumir a lógica da partilha, ensinada por Jesus no episódio da multiplicação dos pães. 

Entre todas estas narrativas, destaco a que está em João devido à riqueza de detalhes catequéticos, embora o ponto fundamental do ensinamento de Jesus esteja presente em todas as narrativas: Jesus só multiplica se alguém lhe oferece alguma coisa. A lógica de Jesus é o oposto da lógica do Mercado, aquela que ensina primeiro crescer o bolo para só depois repartir. Jesus reparte primeiro e só depois se preocupa com as sobras. Se ninguém oferecer algo gratuitamente, não haverá multiplicação. Aqui em João, o destaque é para a generosidade de um rapaz que oferece cinco pães de cevada e dois peixes.

A passagem em João, como não poderia deixar de ser, é muito rica em detalhes misturando dados reais com significados simbólicos. Este texto descreve o quarto sinal, dentro do Livro dos Sinais (Jo 2 a 11). É, portanto, o sinal central. A ruptura na estrutura literária, tanto temporal quanto espacial, indica o início da catequese eucarística da Comunidade do Discípulo Amado. Alguns dos detalhes aqui presentes, relacionados com a partilha e a ceia, apresentam paralelos em Jo 21. Portanto, são reflexões tardias, dando a entender que a comunidade fez uma revisão posterior desta catequese eucarística. 

Em primeiro lugar, a narrativa abre logo situando o episódio “perto da Páscoa dos judeus”. Sendo época da Páscoa, o natural é que todos os judeus peregrinassem em direção à Jerusalém. Ora, Jesus atravessa o lago e vai “para o outro lado”, ou seja, para a terra dos pagãos, longe de Jerusalém. Trata-se de um gesto transgressor. Ao fazer esta opção, Jesus desvia a multidão de peregrinos que seguiam rumo ao templo de Jerusalém. As pessoas seguem Jesus na sua opção subversiva, e vão também para a terra dos pagãos. O que norteava a multidão eram os sinais que Jesus fazia em favor dos doentes. A eucaristia é a celebração de uma nova Páscoa. Esta nova Páscoa não é mais celebrada em Jerusalém, “lugar que Deus escolheu por sua morada”, mas agora num lugar que Jesus escolheu, a céu aberto, um monte cheio de grama. 

Diante desta multidão faminta, Jesus provoca Filipe. Diante da fome, a saída não seriam os donativos financeiros que a comunidade possui? Filipe argumenta que a comunidade não tem bens suficientes para resolver a questão da fome do mundo. Não é mesmo missão da comunidade resolver os problemas da fome. Nem ela tem condições de fazê-lo, diante de seu precário poder nas políticas do agronegócio. De fato, a saída não é financeira porque o poder financeiro da comunidade é mesmo precário.

Mas qual é a saída? Os discípulos se calam. Apenas André toma a iniciativa de apresentar um rapaz que está fazendo uma oferta de cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o próprio André parece não acreditar muito no que está fazendo, ao colocar a grande dúvida que surge na cabeça de qualquer leitor de bom senso: mas o que é isso para tanta gente? 

E temos o rapaz. Não sabemos de onde surgiu. Ele também não fala nada no texto. Apenas faz o gesto de oferenda. Mas o gesto é muito eloquente. É como se ele estivesse respondendo a André: “o que eu tenho não dá para todo mundo! Isso eu sei! Mas o que eu tenho, está aqui! Toma!” Jesus também não diz nada ao rapaz. Acolhe o gesto dele silenciosamente. Mas é como se dissesse: “Isso basta para tanta gente!”

Nas instruções que Jesus dá para André, temos uma chave importante para a interpretação. Jesus manda os “homens”, ou seja, os “adultos” se sentarem para comer. Os homens são sustentados pela oferta do “rapaz”. Creio que aqui temos uma ligação entre o episódio da multiplicação com a catequese batismal. O “rapaz” aqui no texto é chamado de paidárion. Podemos admitir que esta palavra, única em todo o NT, tem o sentido de “alguém que está recebendo a instrução” (paidéia). Portanto, temos aqui um catecúmeno, alguém que está se preparando para o batismo. O texto ressalta que o rapaz é mais generoso e confiante que os “homens” (aqui no sentido de “crentes já batizados”). O rapaz aprendeu e entendeu a lógica da partilha antes que os demais fiéis, e o que ele oferece é sustento para a comunidade.

O rapaz oferece a Jesus pães de cevada e peixes. Estas palavras são a chave para tudo. Aqui é evidente que a palavra grega “pães” (artous) traduz o hebraico léhem. O significado de léhem não é exatamente o “pão” que comemos todos os dias. O sentido é muito mais amplo. Na verdade, a palavra é de matriz semítica com o amplo significado de “sustento” associado à alimentação básica do povo. Em árabe, por exemplo, léhem significa “carne”, já que para os povos pastoris nômades a carne é o prato básico. Para nós, aqui no Brasil, léhem seria nosso feijão-com-arroz.

Da mesma forma, a palavra grega para “peixes” usada aqui neste texto (opsária) significa muito mais que apenas “peixe”. Esta palavra sugere “prato de peixe” ou “peixe preparado”. Provavelmente, o peixe seco e salgado (moxama) que o povo comia. Assim, ambas as palavras usadas para indicar a oferta do rapaz querem dar a ideia de comida, de alimento, de sustento, de tudo o que é necessário para viver. 

Um outro detalhe importante aparece nesta narrativa joanina. João é o único que especifica que o pão é feito com farinha de cevada. É o único a mencionar este detalhe. Este detalhe não é secundário. Naquela época, a farinha de cevada era bem mais barata, custando um terço do preço da farinha de trigo (cf. Ap 6,6). Ou seja, os pobres comiam, em sua refeição diária, pães de cevada com peixe seco e salgado. Pela oferta que o rapaz apresenta a Jesus, podemos concluir que ele é um trabalhador diarista que saiu de casa levando sua marmita para uma jornada de trabalho nas terras de alguém. Ele abandonou o trabalho para seguir Jesus, perdendo-se naquela multidão. Diante da fome da multidão, ele oferece sua marmita para André. Toda sua refeição não custa o denário que receberia por seu dia de trabalho. Com o denário, poderia comprar entre 9 e 12 litros de farinha de cevada. Neste capítulo 6 do evangelho de João, Jesus multiplica a marmita que um trabalhador diarista generosamente lhe oferece. 

Depois de saciar a multidão, Jesus manda recolher os pedaços que sobraram (6,12-13). Os discípulos recolheram doze cestos, número que evoca a totalidade das tribos do povo de Deus. As sobras dão para alimentar ainda todo o povo. Quantas pessoas o Brasil conseguiria alimentar com as sobras de suas gigantescas colheitas de grãos?

O texto conclui com duas interpretações deste gesto de Jesus feitas pelo povo (6,14-15). Uma primeira interpretação é correta: “Esse é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo!” Com o gesto da multiplicação Jesus é o novo Moisés, o Messias, aquele que o povo estava esperando (Dt 18,15-19). Mas este reconhecimento messiânico gera uma interpretação errada: “vieram buscá-lo para fazê-lo rei”. Ao perceber esta intenção do povo, Jesus se refugia na montanha. O verdadeiro rosto do Rei Messias, Jesus só revelará na ceia, ao lavar os pés dos discípulos. Mas aqui ele venceu uma grande tentação: a de conseguir o poder através da manipulação da fome do povo. 

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